quarta-feira, novembro 14, 2007

Na linha de tiro, eu entendi

Quando disse aos colegas de trabalho que iria na tal “instrução e competição de tiro” da Brigada Militar para jornalistas, nem eu sabia o que havia motivado a minha decisão, o que eu ia fazer lá. Achei que ter um pai policial era uma boa desculpa. E fui. Eu não sabia, mas estava aceitando uma possibilidade de encontro comigo mesma, com a minha infância, com o meu pai. Com protetores auriculares, só conseguia ouvir o barulho abafado dos disparos e o som do meu coração, batendo rápido, nervoso, descompassado. O cheiro de pólvora era familiar, literalmente. Na hora de apertar o gatilho, ali, na linha de tiro, eu entendi.

[idos de 1990] Não sei a idade ao certo, mas acho que lá pelos 10 anos de idade eu costumava acompanhar meu pai em incursões no mato para ele treinar a pontaria. Minha irmã morria de medo. Eu gostava. O tiro ao alvo do meu pai era “roots”. Nada de proteção para o ouvido ou alvo refinado. Ele levava uma tábua, um pedaço de pau que fazia as vezes de vítima. Acho que usava telhas também. Enfim, tudo feito sem glamour, a vida como ela é. Eu curtia. Olhava atenta. Tentava entender a velocidade do projétil. Depois, buscava os cartuchos correndo. Fazia o papel de auxiliar. E no dia em que ele ofereceu “Quer atirar?”, eu não pensei duas vezes.

Pena que a gente nem imagina. Os momentos-chave vividos na infância deveriam vir acompanhados de legenda: “Guarde isso em alguma gaveta confiável do seu cérebro. Será de extrema importância para compreender fatos subseqüentes”. Mas não é assim que a banda toca, infelizmente.

[final de 2007] Era hora de apertar o gatilho e a experiência dos tempos de criança pouco importava naquele momento. Havia platéia. Jornalistas olhando, colegas de trabalho, brigadianos. E o pior. Meu pai não estava ali para dizer como eu tinha que posicionar a perna, como pegar o revólver e, principalmente, não estava ali para segurar a arma comigo e ficar na retaguarda para o caso de a força do disparo jogar o meu corpo para trás. Então eu entendi tudo. Aquele tiro era meu, sem a ajuda de ninguém, sem proteção paterna. A coisa agora era comigo. Doze disparos em seqüência, dois deles calculadamente mirados e acertados no peito do alvo. O resto foi “barberagem”. Tiro na mão do boneco e outros nem perto.

Se não fosse a experiência de acompanhar os treinamentos do meu pai, dificilmente eu teria participado da instrução de tiro da BM. Aliás, eu nunca teria ido, vamos falar a verdade. E o mesmo serve para diversas outras situações em que eu não teria me metido se não fosse a influência policialesca dele. Sensação de perigo iminente, aceleração do coração, mira, barulho ensurdecedor, cheiro de pólvora, adrenalina. Entendi meu pai, a ausência dele, o olhar dispersivo, a vontade de que as filhas aprendessem a dar o próprio tiro. Há dez anos, ele estava me ensinando a crescer, estávamos crescendo juntos, e eu nem imaginava isso.