quinta-feira, agosto 17, 2006

Perfil de um anônimo

Enquanto ele não gira a chave na ignição e os passageiros não ouvem o barulho do motor, aproveita para puxar conversa, mais uma de tantas, quase sempre começando por “vocês que são jornalistas, me digam o que vocês acham sobre...”. Se o assunto não vinga, ele encontra outro. Ou se mete nos comentários que circulam. Ou larga uma frase solta como “os meus filhos acham que eu sou banco, veja só como estão as coisas, essa garotada...”. Na maioria das vezes encontra um interlocutor disposto a trocar idéias, mesmo que 40% dos passageiros estejam completamente calados, sonolentos e pensando em chegar o mais rápido possível até suas camas. De segunda a domingo, exceto nos dias de folga, ele, cafuzo, cabelo afro, pele morena, olhos puxados, sorriso de Jair Rodrigues (os dentes brancos, parelhinhos e freqüentemente à mostra), tem a incumbência de deixar na porta de casa jornalistas e estagiários que vêem terminar mais um dia de trabalho.
Ele não é “o motorista”. É “o Sandro”. Pode ser que já tenha passado dos cinqüenta anos. Talvez tenha até cinqüenta e cinco, ou seis. O porte físico também se assemelha ao de Jair Rodrigues. Magro, mas nem tanto. Forte, mas nem tanto. Estatura média. O sotaque mostra que do Sul ele não é. Não chia como os cariocas, mas quase chega lá. Talvez por causa vida de caminhoneiro que levava pelo Brasil afora, seu sotaque original de amazonense tenha se diluído, se transformado em um falar híbrido. O fato é que, embora durante muito tempo tenha viajado pelo país, agora está fincado em Porto Alegre, e percorre diariamente um trecho simples. Mas ao mesmo tempo complexo. Tem de lembrar que hoje deve pegar primeiro a Avenida Ipiranga, já que a moça que desce próximo à Bento Gonçalves está de folga. Depois Santana, Venâncio Aires, Lima e Silva, José do Patrocínio. Depois centro, Demétrio Ribeiro e algumas outras. Deve pensar “moram bem esses jornalistas e ainda reclamam”.
Dirigindo, não é o exemplo maior de respeito às regras do trânsito. Tanto que às vezes é xingado por taxistas ou motoristas comuns, após cortar a frente de outro veículo ou fazer ultrapassagens em parte perigosas. Parar no sinal vermelho também não é o seu forte. Mas desde a primeira pessoa que deixa em casa, no bairro Medianeira, até a última, no Petrópolis, percorre com desenvoltura grandes avenidas e ruas estreitas.
No caso das mulheres, ele espera que elas coloquem a chave no portão do prédio. Da mesma maneira que fazem os pais ou tios, que não arrancam o carro enquanto enxergam alguma possibilidade de perigo. O mesmo zelo não é reservado aos homens. Deve pensar “esses se viram por aí”.
Sandro conta histórias. Dá risada. Sorri seu sorriso de Jair Rodrigues, que em alguns momentos chega a irritar de tão faceiro. Gosta de dirigir e de estar entre jornalistas, perto da notícia e das pessoas que a dão forma, tendo entre essas um pequeno poder, o de devolvê-las sãs e salvas às suas casas, aos seus filhos, maridos ou namorados, travesseiros e lexotans. Com um singelo, porém firme, “bom descanso”, às vezes oferecido apenas por educação, e noutras com carga profunda de sinceridade, abençoa quem desce do microônibus e entra novamente em seu mundo particular.